domingo, 18 de março de 2007

comentários/reflexões







As virtualidades do virtual
Acerca das transmutações do real em virtual e do virtual em real

Canalizei a reflexão do texto de P. Lévy para alguns pontos polémicos sugeridos pelas "virtualidades" que o próprio texto encerra. Assim, verifica-se que a diferença estabelecida entre os conceitos de "actualização" e de "virtualização" , sendo este último associado pelo autor a uma "mutação de identidade", está longe de constituír uma diferença que se assemelhe à distinção estabelecida no séc. XVI por Thomas Morus entre o conceito de utopia e de realidade: é que a utopia, no seu sentido positivo e extremamente valioso não institui, ao contrário do "virtual", uma "mutação de entidade" ( um não lugar ou lugar virtual, descarnado, espaço de uma outra natureza), mas tão só o que trazemos connosco e indispensável para construír algo de novo e de real. Assim a utopia não se equipara ao " virtual" mas ao real-projecto, ao real vindouro: ao sonho que alimenta vontades e mobiliza a acção.
Se o virtual- como afirma o autor, " (...) consegue trazer à organização da sociedade uma maior liberdade", não é lícito associar essa "maior liberdade" à ausência de "um lugar físico preciso" na nova concepção da Empresa.
A nova cultura virtual(não confinada a um espaço físico concreto) é de facto uma "cultura nómada" em que os assuntos surgem com um mínimo de inércia(parafraseando o autor). Porém, não é o único nem sequer o mais virtuoso ou o primeiro "nomadismo do espírito". Quanto ao mínimo de inércia, longe de encerrar apenas virtudes, transporta perigos que o próprio autor denuncia: " (...) tudo o que era real muda de identidade para o virtual". Esse novo espaço, essa nova velocidade na virtualização, consubstancia uma ínfima faceta do problema "da não inscrição" tratado por José Gil na sua recente obra "Portugal hoje - o medo de existir". É que o Existir( e não apenas no caso português concreto referido por J. Gil), carece de espaço e de tempo onde se enraízem memórias e vivências reais, em escalas e ritmos humanizados. A velocidade e a excessiva multiplicação e desmultiplicação da informação e da comunicação introduzem a nova "tirania" de que resultou um novo Homem - " o Homo Zappiens" a que alude Almeida Santos na obra do mesmo nome. O mínimo que se deseja como salutar, nesta nova ordem, é que pelo menos coexista com o Sapiens.
Torna-se por isso interessante questionar algumas afirmações categóricas do texto: "(...) Neste momento o humano viaja no espaço sem nenhum destino específico, mas com mais possibilidades de existência". Será? Que tipo de existência? Necessariamente mais volátil, mais acelerada, mais rarefeita ao nível das interacções, das relações, da introspecção... a nova ordem imposta convida à dispersão introduzida pela celeridade e excessiva multiplicação e desmultiplicação dos espaços virtuais: interacções carenciadas de "carne", presença e proximidade física, proximidade, afectos e emoções, interacções cada vez mais desumanizadas.
É discutível ainda que " (...) quem recorre mais ao telefone, seja quem convive mais no exterior, ou seja, quem faz um maior uso das tecnologias de comunicação seja, também, quem se move mais no social". Admitindo que se "mova", importará perguntar se essa "mobilidade" corresponde necessariamente a um crédito ou incremento de maior Existência.
Por último e para não me alongar em demasia, quando o texto se refere à invasão do privado pelo público, concluíndo que: " (...) a virtualização é sempre heterogénese: ' processo de acolhimento da alteridade" - o que importa reflectir é a natureza, qualidade e reflexos desse " acolhimento" que insidiosa e paulatinamente se impõe na existência e na vida de cada um de nós; é que se não for regulado/regulamentado por regras precisas, por princípios necessariamente contratualizados no sentido de salvaguardar o domínio privado da invasão de todo o virtual não desejado, não consentido e não contratualizado, consubstancia-se um cenário em que esse "acolhimento" é cada vez menos acolhedor e inquietante! Invadir-nos-á, irremediavelmente, numa lógica em que também o privado não saberá resguardar-se da proletarização e da escravização iminentes, não em substituição do tempo e espaço de trabalho tradicionais mas em sobreposição/duplicação dos mesmos.

" Oui, c'est La Vitesse"
Não saberei dizer se as máquinas pensam ou não, dependerá, obviamente, do que em princípio entendermos que seja o pensar.
Se por pensar, (recuperando a acepção cartesiana) se entender também, o querer, o sentir e o imaginar, parecer-me-á legítimo concluir que as máquinas de facto não pensam. Também parecerá óbvio que " não pensam por si, autonomamente, não pensam por nós, nem para nós, não sonham, não desejam, não sofrem, nem acusam desgosto ou alegrias". Todavia, e até para evitar mal entendidos, a nova ordem É o que É e sobre a mesma não há que adoptar posturas de inflamada apologia ou de cega rejeição, vulgarmente associadas aos "Velhos do Restelo"e para aí remetidas, até por puro comodismo ou oportunismo simplório.
Assim, parece-me pacífico concluír que as máquinas não nos impedem de pensar, de sentir, de imaginar, ou até de querer,(cada vez com maior afinco desejante), libertar-nos da nova racionalidade e do novo modo de viver que a sua simples existência (a das máquinas"inteligentes) impôs. Se acaso ainda restarem dúvidas sobre essa emergência do salutar DESEJO de fuga a essa tirania, bastará atentar à rotina diária de qualquer comum bancário ou "manga de alpaca" dos novos tempos.
De facto, o ritmo criado por essa tão valorada dinâmica da "vitesse-simplex" é o verbo imperativo de uma outra racionalidade gerada pela máquina e pela sua omnipresença, nos mais banais gestos do quotidiano. É que ao contrário do pensar, à escala cartesiana do cogito, cujo dinamismo espontâneo era « de dentro para fora», esta outra racionalidade impõe-se « de fora para dentro», incutindo na consciência e no gesto novas formas de viver e, portanto, de existir : avessas à pausa, à meditação, à vagarosa introspecção; pelo menos essa, feita no diálogo expectante de nós connosco mesmos ainda nos devolvia, com maiores ou menores desencontros, ao que somos.
Em vez disso, a apologia da celeridade e da eficácia, das competências e da destreza, ao ritmo dos "relógios de ponto" do presente e do futuro, deixa-nos suspensos de automatismos, tanto mais interiorizados quanto maior for o tempo dedicado a esses novos rituais de um novo e estranho culto . "Estranho" porque subtrai ao tempo as pausas vitais do vagar por onde o pensamento flui e o olhar demora... enfim, subtrai ao tempo o tempo em que o existir e o pensar eram uníssonos. O acréscimo de tempo que supostamente a máquina (as máquinas) produziriam, é meramente ilusório, já que elas "tecem", mais rápido do que qualquer hábil aranha, "as novas teias do tempo"; não de um tempo para usufruír e gerir, mas de um tempo para ocupar. As novas destrezas e competências impõem outras, caleidoscopicamente multiplicadas, sem nenhuma possibilidade de fuga ao ritual cada vez mais agilizado e mobilizador.
De facto, como já vai longe, tão longe, o ensejo de podermos dizer como o poeta , em jeito de gracejo: " Ai
que prazer, ter um livro para ler e não o fazer

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